sexta-feira, 5 de março de 2010

Romance marginal

"Quarto de despejo, diário de uma favelada"
por Alex Willian Leite*

A autora:
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, interior de Minas Gerais, em 14 de março de 1914. Estudou até o segundo ano primário. Migrou para São Paulo em 1947, indo morar na extinta favela do Canindé, na zona norte, onde hoje é a marginal do rio Tietê.
Em 1960, o jornalista Audálio Dantas, ao visitar a favela do Canindé para escrever uma matéria sobre a expansão do local, conhece Carolina, e descobre que por traz de uma senhora, negra e podre, existia uma mulher sensível, inteligente e audaciosa. Nasce o celebre “Quarto de despejo”, que narra a dura realidade de um pequeno espaço geográfico, mas que reflete à base da vida moderna capitalista.
Diante de uma lógica desumana a sociedade caminha à passos largos rumo ao “quarto de despejo”. As transformações cercam e embelezam a cidade, que está gritante com seus carros e agitos. Os “pássaros” cresceram, e até carregam gente. As “árvores” tornaram-se de concreto. A estrada agora esquenta em um chão escuro e ofuscado. O homem não sente mais o bater do seu coração. Estamos no mundo moderno!
O concomitante grito de socorro de uma mulher, que sempre anseia em trocar as taboas de sua casa por tijolos. Carolina morava na favela do Canindé, na rua A, barraco n° 9, seu “quarto de despejo”. Ela deixou de ser o futuro da nação, para se tornar um problema social. A engrenagem desse sistema transformou Carolina em uma peça, já lubrificada pela dor da desigualdade social promovida pelo sistema de classes.
Haveria, segundo a concepção marxista, a constituição da história é uma permanente dialética das forças entre poderosos e fracos, opressores e oprimidos; a história da humanidade seria constituída por uma permanente luta de classes. Classes essas que, para Engels, são produtos das relações econômicas de sua época. Assim apesar das diversidades aparentes, escravidão, servidão e capitalismo, seriam essencialmente etapas sucessivas de um processo único. A base da sociedade moderna é a econômica. Sobre esta base econômica se ergue uma superestrutura. Mas essa é uma outra discução para um outro momento.
As margens desse sistema, existe uma sociedade marginalizada e oprimida, sem oportunidades de ganhos e herdeira de um racionalismo, nos moldes weberiano, o “dever ser” da funcionalidade do capitalismo. Marx se tornou um pioneiro ao articular uma emancipação humana do “Quarto de Despejo" que o capital cria, e sintetizou a luta de interesses antagônicos das classes de diferentes lógicas de vida. Para Marx, o êxito do protagonismo revolucionário do proletariado dependia, em larga medida, do conhecimento rigoroso da realidade social. Ele considerava que a ação revolucionaria seria tanto mais eficaz quanto mais estivesse fundada, não em concepções utópicas, mas numa teoria social que reproduzisse idealmente o movimento real objetivo da sociedade capitalista. Tal realidade travava em vários interesses, um deles é o submundo da miséria, que a classe dominante procura manter. Carolina não enfeitava a cidade, muito pelo contrário, sua pele negra reluzia à pobreza e desprezo, que a burguesia não se importava em ver. Sua função no sistema se caracterizava em recolher papeis nas ruas fétidas de São Paulo. Reciclava até mesmo carne podre que os animais desprezavam, mas para ela se tornava na mais suculenta e saborosa refeição, que a “desigualdade social de cada dia nos dai hoje”. Carolina, o peso morto do Estado.
Contexto histórico da obra
O livro “Quarto de despejo, diário de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus se passa na década de 50. Uma década de deslumbramento ocasionado pela “modernização” e industrialização do Brasil. Segundo Fernando Novais, “na década de 50, alguns imaginavam até que estaríamos assistindo ao nascimento de uma nova civilização nos trópicos, que combinava a incorporação das conquistas materiais do capitalismo com a persistência dos traços de caráter que nos singularizavam como povo: cordialidade, a criatividade, a tolerância.” “(...)” “A visão de progresso vai assumindo a nova forma de uma crença na modernização, isto é, de nosso acesso iminente ao Primeiro Mundo.” Essa euforia da modernização caracterizou o “anos dourados”, o país passou a produzir “quase tudo”. Os eletrodomésticos passavam a fazer parte da vida cotidiana da classe média, a indústria automobilística se tornou o símbolo dessa “modernidade”. Porem, essas engenhosidades da vida moderna mascarava outra realidade, a desigualdade social.
A modernidade brasileira parte do otimismo para a desilusão, o empreendimento do capitalismo se concretizou nos seu mais peculiar viés. Os produtos passaram a satisfazer não mais as necessidades básicas, mas as necessidades dos anseios do mundo moderno. A burguesia brasileira, com suas amarras voltadas para o capital estrangeiro, renunciava a qualquer pretensão de fornecer as bases para a compreensão do conjunto da vida social e recusava a promover uma política social capaz de reparar os erros do individualismo financeiro. As conseqüências dessa “modernidade” foi a forte concentração de riquezas nas mão de ínfimas pessoas; desencadeou uma estagnação financeira, que nos anos 80 ficariam mais visíveis. A grande conurbação que sofreu as cidades brasileiras, devido acima de tudo ao êxodo rural, ocasionou na favelização das grandes cidades. No cenário político, que por sinal Carolina sita várias vezes essa conjuntura, se encontrava com instabilidade. Tudo era incerto, depois do suicídio de Vargas o Brasil tornou-se um barril de pólvora, que logo, explodiu desembocando na ditadura militar em 64.
Nesse breve contexto histórico nos fez situar como vivia o cenário de Carolina. A modernidade para ela ficou somente no plano das idéias, mas a desigualdade era materializado. A favela do Canindé foi uma das conseqüências da estagnação econômica que o capitalismo “selvagem” trouxe para os grandes centros, e a falta de estrutura urbana multiplicou vários “quartos de despejos” pelo Brasil afora.
“O quarto de despejo”
Não irei debulhar a obra de Carolina para escrever aqui todos seus pontos que remetem a lutas de classes, e conseqüentemente à desigualdade, pois em síntese, ela já expressa esse enredo pela obra completa; o intuito é compará-la com a própria realidade dos fatos, e analisá-la em um contexto marxista, sintetizando a luta de classe.
Ao ler seu brilhantíssimo trabalho, não pude deixar de me emocionar com sua simplicidade de escrita, sua sensibilidade intelectual de interpretar a realidade e transferi-la para o papel, e acima de tudo sua luta em sobreviver diante de um “darwinismo social”, uma “seleção” coercitiva que impera nesse sistema, e transfere toda responsabilidade de “vencer” para o individuo.
Logo nos primeiros capítulos pude verificar o cotidiano de uma favela, as idas e vindas para buscar água, seu diálogo com seus vizinhos e sua rotina de trabalho como catadora-de-papel. Carolina expressa um sentimento individualizador que existe dentro de Canindé. ‘A única coisa que não existe na favela é solidariedade” (pág. 13) “E pensei na eficiência da língua humana para transmitir uma noticia.” (pág. 22) “Oh! Se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais decente. ”(pag.10) Os conflitos entre os moradores são constante e desestabilizador, devido, ao que parece, pela insensibilidade e concorrência de sobreviver que assolava as favelas. Esse sentimento racional individualizado brota no seio do mundo capitalista, pois agora o individuo não mais depende do outro para manter sua espécie, ele tem que manter sua vida em constante interesses isolados. “O Individualismo é uma expressão recente.” “(...)” “é um sentimento refletido e pacifico, que dispõem cada cidadão a isolar-se da massa de seus semelhantes e a retirar-se para um lado com sua família.” “(...)” “O individualismo é de origem democrática e ameaça a desenvolver-se.” (Tocqueville, pág. 386) Alexis de Tocqueville, ao escrever a “A democracia na América” traçava os perigo dessa forma de democracia, que alias foi acoplado pelo sistema capitalista e transmite esse sentimento competitivo. Na favela do Canindé esse isolamento fica claro, as constantes intrigas e o sentimento de não se identificar com os vizinhos mostra a real lógica individualizada que Carolina se deparava. Segundo Braverman: “É somente na era do monopólio que o modo capitalista de produção recebe a totalidade do individuo, da família e das necessidades sociais e, ao subordiná-lo ao mercado, também os remodela para servirem às necessidades do capital.” (Cap. 13, pág. 231)
Tal remodelagem desemboca na luta de classes por interesses antagônicos, desencadeando uma consciência que entrará em conflito, ou seja, “sua expressão relativa à curto prazo é um complexo dinâmico de estados de espírito e sentimentos afetados pelas circunstancia e cambiantes com eles, às vezes, em períodos de depressão e conflito, quase de dia a dia.” (Idem, pág. 36) Esses trechos demonstram as características fundamentais que o capitalismo provoca na humanidade. Carolina, por diversas passagens clarifica os conflitos sociais existentes na sociedade capitalista. “Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade.” (Pág. 14) “Suporto as contingências da vida resoluta. Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência.” (Pág. 15) “ – Cato papel. Estou provando como vivo!” (Pág. 17) “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (Pág. 27) “Condói-me ver tantas agruras reservadas aos proletários” (Pág. 41) “O que eu revolto é contra a ganância dos homens que espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja.”(pág. 41) Esses poucos fragmentos do livro, que, alias são muitos, fortalece os conflitos de classes na sociedade.
Carolina expressa uma consciência de classe tenaz e dialética, seu sentimento e necessidade de mudança constantemente bate à porta, pedindo reação de uma classe humilhada e jogada na periferia do capitalismo. Seu testemunho remete a analisar-nos essa forma de organização, essa “proeza” da vida moderna, a desenfreada obtenção de lucros sem pensar nas conseqüências.
Em resumo, o “Quarto de Despejo” mostra a dura realidade de uma nova barbárie desse sistema opressor, representada pela continuidade do capitalismo. As garantias de trabalho são reduzidas ou eliminadas. Formas de exploração do trabalho que pareciam eliminadas nas historicidades dos fatos reluzem novamente, como trabalho semi-escravo, o exemplo claro foi aqui explicitado na obra de Carolina no trabalho de catadora-de-papel. Nos porões da globalização estabelece moradia para os chamados “subdesenvolvimento”, os “quartos de despejo”, estão cada vez mais se multiplicando pelo mundo, sobrando vaga sempre para as classes menos favorecidas da sociedade. “Com efeito, a organização social fundada no modo de produção capitalista – a sociedade burguesa – já explicitou, ao cabo de sua existência mais que secular, o pleno esgotamento das potencialidades progressistas.” (Neto, Pág. 243. 2007)
Essas contradições que desembocam na luta de classe, teorizada por Marx, irá desestabilizar essa forma de organização, não se constitui por um determinismo histórico, mas sim por escolhas conscientes operadas por homens que direcionam a sua ação política no marco complexo das lutas de classes.
Nas palavras da própria Carolina:

- “Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz (país) tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo está fraco, morre um dia.” (Pág. 35)
O ponto de partida dessa caminhada é a eliminação dos privilégios aberrantes que bloqueiam o acesso do conjunto da população à vida econômica e política. Na prática, isso significa transformar a luta por terra, trabalho e teto no eixo de articulação de um novo projeto para o mundo. "Mas o povo não deve cançar (cansar) . Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo.” (Pág. 48)

Nota
Este trabalho respeitou fielmente a linguagem da autora que muitas vezes contrarias a gramáticas, mas que por isso mesmo traduz com realismo a forma de o povo enxergar e expressar seu mundo.
Bibliografia
Jesus, Carolina Maria
Quarto de Despejo diário de uma favelada / Carolina Maria de Jesus – 1.ed. – São Paulo: Ática S. A., 1994
Netto, José Paulo
Economia Política: uma introdução critica / José Paulo Netto e Marcelo Braz. – 3.ed. – São Paulo: Cortez, 2007. – (Biblioteca básica de serviço social; v. 1)
Bravermam, Harry
Trabalho e Capital Monopolizado: A degradação do trabalho no século XX – 1.ed. –
Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
Tocqueville, Alexis
A Democracia na América. Trad. Neil Ribeiro da Silva – 3.ed. – Editora Itatiaia Limitada. Editora da universidade de São Paulo. São Paulo, 1987.

2 comentários:

  1. Muito legal a reflexão sobre o livro, mas sinceramente os erros ortográficos comprometem a qualidade do trabalho. Para que seu trabalho seja melhor valorizado, sugiro uma revisão do português, pois há erros primários no texto.

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  2. os erros nao tiram o credito do belissimo texto de Carolina, essa linguagem realça mais ainda as condiçoes e as oportunidades dadas aos pobres marginalizados da época.

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